No último dia 30 de novembro, realizamos no Ilê
Funfun Awooshogun, toque de Jurema, Encantaria do Mestre Canindé. Gostaríamos
de aproveitar o ensejo para passar a “pena” à nossa filha de santo Yacyrê sobre
sua experiência ritual. Axé!
“Considero complexa a
missão de, em poucas linhas, expressar meus sentimentos com relação ao Toque de
Jurema de Mestre Canindé, realizado no Ile Funfun Awooshogun, Casa da Cura e do
Destino, em Itanhaém, SP.
Infelizmente, não pude
participar do preparo do ritual ao longo da semana passada. Sei que muitos dos
fundamentos e awos são vivenciados na construção do ritual, dos elementos,
assentamentos. Trazer a “Jurema” não é algo trivial, simplório. Não basta beber
jurema e entoar uma ou duas louvarias. Vivenciar a Jurema, cujas raízes
remontam ao nordeste brasileiro, exige que o sacerdote esteja aberto a este
universo, adentre nas correntes espirituais, no imaginário coletivo, na memória
ancestral e, inclusive, na própria história da constituição do que é ser
brasileiro.
Uma das coisas que mais
impressionou Bruno Latour (filósofo da ciência) ao vivenciar rituais de
candomblé foi o fato de que seus adeptos constroem, fisicamente, suas
divindades. Não falo aqui do candomblé, mas fazendo aproximações, todas as
construções de rituais afro-brasileiras, sejam elas quais forem, permitem que o
homem, imbuído de sua materialidade, de sua concretude, de sua organicidade construa
cenários, assentamentos e espaços que são, por excelência sagrados. Os rituais
religiosos são, por natureza, atividades de cosmização do mundo, em que há um
processo de ordenamento de fatos, situações, conceitos para que a realidade
seja significada, seja compreensível e palatável. Em outras palavras quero
dizer que quando os rituais são construídos, há a oportunidade de que seus
adeptos entrem em contato com suas crenças e convicções e façam com que elas
deem significados à realidade. Assim, gostaria de dizer que, ainda que eu não
tenha participado da construção do ritual, antes mesmo dele ocorrer, o que vivi
naquela noite foi especial e deu sentido à minha existência.
Penso que a sensação
que mais me marcou foi o fato de eu ter sentido uma profunda identidade com o ´ser
brasileiro´. Claro que, ao afirmar isso, posso imediatamente, ser criticada por
quem considera a brasilidade uma farsa. No entanto, o que vivi foi a
valorização de contribuições espirituais de “linhas” diversas e que se
expressam, para maior facilidade de compreensão, em caracteres regionais. Ao
viver o toque da Jurema, não me sentia deslocada daquela realidade, ao
contrário, tudo o que ali foi colocado, as palavras dos Mestres, as louvarias,
as danças, as vestimentas eram uma parte de mim que se revelava. Este é outro
ponto fundamental, os rituais afro-brasileiros favorecem que seus adeptos teçam
laços entre a comunidade de santo e entre as várias comunidades espirituais.
Naquele dia tive certeza que havia uma aliança firmada entre mim, meus irmãos
de santo e as “raízes” da Jurema, entendendo estas como correntes espirituais.
Outro elemento
essencial a ser colocado é a utilização de elementos da natureza pelos Mestres,
especialmente Mestre Canindé. Naquela noite nenhum Mestre ou encantado acostou
em mim e, por isso mesmo, estive atenta a diversas situações. Em uma delas, eu
refletia sobre a doença, cura e terapias e, justamente, naquele momento, Mestre
Canindé colocou ao seu lado um vaso de louça com água, jurubeba, erva de bicho
e alecrim. Além disso, colocou uma cuia com Jurema. Disse ele que ali estavam
as curas visíveis e invisíveis para todos que lá se encontravam. Imediatamente
pensei em como essas entidades conseguem, com simplicidade, demonstrar um
complexo processo do que representa a cura para as religiões afro-brasileiras.
Elementos simples e, por isso mesmo, cheios de vida, sem tantas “manipulações”,
ricos em axé. Pensei que estamos tão longe da natureza, tão desencantados,
envoltos no mundo moderno, urbanizado e capitalista que pouco sabemos e
apreendemos da sabedoria da natureza. Aos olhos do mundo civilizado, uma cuia
com jurema e um pezinho de alecrim são adornos ou, no máximo, “coisas de
benzedor velho”. Com tanta “ciência”, tanta “medicina”, nossos olhos são
treinados para não ver a natureza, para não relevá-la. O fato é que a ciência
da jurema se faz tão ou mais eficaz com as fumaças das marcas (cachimbos)
ritmadas pela Marca Mestra (maracá). E, como escrevi anteriormente, esta
ciência não é só da raiz da jurema, é um complexo mágico-terapêutico da
espiritualidade que se concretiza em uma singular terapia de brasilidade.
Talvez isso resuma o
que senti no ritual: a terapia da brasilidade”.
Axé,
Yacyrê
Em nome de toda a
comunidade de santo de Pai Rivas.
Aranauam, Motumbá, Mucuiú, Kolofé, Axé, Salve, Saravá
Rivas Neto (Arhapiagha) – Sacerdote Médico
Ifatosh'ogun "O sacerdote de Ifá que tem o poder de curar”
Publicação 414